O cônjuge separado de fato é herdeiro?
Nos termos literais do art. 1.830 do Código Civil, o direito sucessório do cônjuge sobrevivente só é reconhecido se, no momento da morte do outro, não estavam separados judicialmente ou separados de fato por mais de dois anos, salvo prova de que a convivência se tornou impossível sem culpa do sobrevivente.
O termo "separado de fato" refere-se à situação em que os cônjuges ou companheiros vivem separados, sem ter formalizado a separação legalmente, seja por meio de divórcio ou de dissolução de união estável.
Ou seja, nos estritos termos do referido dispositivo legal o cônjuge separado de fato, desde que por não mais que dois anos, seria herdeiro.
Mas será assim mesmo? O tema é bastante controverso.
Para boa parte da Doutrina, com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/10, o dispositivo deve ser adaptado à nova ordem constitucional, não sendo mais necessário um período de dois anos de separação de fato, mas apenas a separação de fato, para que se dê a perda da condição de herdeiro.
Lembremos que o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 66, que alterou a redação do art. 226, § 6º, da Constituição da República, passou a ter a seguinte redação: "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio". O confronto desse novo dispositivo constitucional com o antigo - onde se lia que "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos" traz também a conclusão de que não se admite mais a discussão da culpa em sede de divórcio.
O Prof. José Fernando Simão esclarece que a regra do prazo de dois anos no artigo 1.830 tinha uma estreita relação com o prazo necessário para o divórcio direto, conforme previsto no art. 1.580, § 2º, do Código Civil, que decorria da redação original do art. 226, §6º, da Constituição Federal. Quem já tinha tempo suficiente de separação de fato para permitir o divórcio direto perdia a qualidade de herdeiro. No entanto, a partir da Emenda Constitucional nº 66, basta que haja a separação de fato para que ocorra o divórcio, uma vez que os prazos contidos no §6º do art. 226 da CF foram suprimidos. Portanto, a leitura do art. 1.830 deve ser feita de outra maneira a partir de 14 de julho de 2010.
Como referido acima, o referido dispositivo legal traz a ressalva salvo prova de que a convivência se tornou impossível sem culpa do sobrevivente. Neste caso, ainda que decorrido o prazo legalmente previsto, o cônjuge separado de fato ainda permaneceria herdeiro. Mas a culpa pode ainda ser debatida em questões sucessórias? A disposição da parte final do art. 1.830 do Código Civil pode gerar discussões acerca da culpa na separação de fato dos cônjuges, o que vai contra à reforma imposta pela Emenda Constitucional n. 66/2010, que aboliu a discussão da culpa na questão do fim do casamento. Dessa forma, é possível argumentar que a parte final desse artigo é inconstitucional, pois permite a subsistência do direito sucessório além de dois anos, baseado em alegações de culpa do falecido pela separação de fato.
O tema ainda é controverso nos Tribunais, pois o STJ persiste prestigiando a interpretação literal do dispositivo legal. Veja que em recente julgado (do ano de 2015) o STJ seguiu outro caminho, reconhecendo o direito do cônjuge de provar a culpa do falecido para que persistisse na condição de herdeiro, sob o argumento de que a exclusão do direito sucessório do cônjuge sobrevivente com a simples separação de fato, independente de lapso temporal ou arguição de culpa, não exprime "o valor da justiça nos casos de abandono de lar por um dos cônjuges, ou de decretação de separação de fato pelo Poder Judiciário dos consortes em virtude de tentativa de morte ou injúria grave, de casais unidos, por exemplo, há mais de vinte anos, e que estão separados de fato há mais de dois anos" (REsp 1.513.252/SP). O entendimento que prevalece é o de que o cônjuge herdeiro necessário é aquele que, quando da morte do autor da herança, mantinha o vínculo de casamento, não estava separado judicialmente ou não estava separado de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo, nesta última hipótese, se comprovar que a separação de fato se deu por impossibilidade de convivência, sem culpa do cônjuge sobrevivente (REsp 1.294.404/RS).
De todo modo, com a equiparação da sucessão dos cônjuges e dos companheiros segundo a tese fixada pelo STF no sentido de que no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/02, a regra a ser adotada vale tanto para cônjuges quanto para companheiros, separados de fato.
É possível concluir também que, se houver um processo de divórcio em andamento, mesmo que um dos cônjuges faleça, seja ele autor ou réu, a ação deve continuar, pois há interesse jurídico na demanda. A decretação do divórcio leva à perda da qualidade de herdeiro, se adotada a tese aqui defendida.
É importante destacar, por fim, que a questão da separação de fato pode gerar discussões judiciais, pois é preciso analisar cada caso concreto e verificar se houve ou não convivência contínua e duradoura, além de outras circunstâncias que possam influenciar na decisão judicial. Por isso, é fundamental contar com a orientação de um advogado especializado em direito sucessório para garantir o reconhecimento dos direitos do cônjuge ou companheiro sobrevivente em caso de sucessão.